O avião que realizou mais de 500 mil voos e virou um dos maiores símbolos da aviação brasileira teve um começo marcado por acidentes fatais
Algumas aeronaves tornam-se verdadeiros ícones de uma época ou até de uma rota específica. Foi o caso, por exemplo, do Lockheed Electra II na ponte aérea Rio–São Paulo, o trecho mais prestigiado da aviação nacional.
Durante 17 anos o Electra II operou exclusivamente na ponte aérea, sempre com a pintura da Varig. Foram 15 exemplares desse modelo na frota gaúcha, que juntos fizeram mais de 500 mil viagens — o equivalente a cerca de 17.500 voltas ao redor da Terra ou 560 viagens à Lua. Ao longo dessa trajetória, o Electra II acumulou mais de 217 milhões de quilômetros voados, transportou mais de 33 milhões de passageiros, totalizando 777.140 horas de voo e 736.806 pousos completos.
Esses números impressionam quando se fala do quadrimotor turboélice da Lockheed, que serviu no Brasil por 30 anos sem registrar acidentes em serviço. O Electra se despediu do público brasileiro em 1992 e até hoje é lembrado com saudade pelos entusiastas da era romântica da aviação.
Transição para o jato
No começo da década de 1950 a Lockheed trabalhava no potente C-130 Hercules, um quadrimotor turboélice ainda hoje reconhecido pela versatilidade e confiabilidade. Apoiada nos estudos do C-130 e em pesquisas que demonstravam a eficiência de turboélices em rotas de curto e médio alcance — reforçadas pelo sucesso do Vickers Viscount — a Lockheed iniciou o desenvolvimento de um turboélice para transporte comercial.
Desses estudos surgiram dois conceitos: o CL-303, de asa alta, com grande semelhança ao C-130; e o CL-310, de asa baixa e perfil mais esguio — ambos projetados para usar o motor Allison 501, já empregado no C-130. Por diversas razões, inicialmente esses projetos não despertaram interesse entre as companhias norte-americanas.
Em 1954, porém, a American Airlines definiu as especificações básicas para um novo quadrimotor turboélice para até 100 passageiros, destinado a substituir seus antigos quadrimotores a pistão em rotas de médio alcance. Para manter sua presença no mercado comercial, a Lockheed baseou sua proposta no CL-310.
Com algumas alterações, o projeto atraiu a atenção da American Airlines e também da Eastern Airlines, que procurava uma aeronave mais moderna para voos domésticos.
No início de 1955 a Lockheed apresentou o L-188 Electra, um robusto quadrimotor equipado com quatro Allison 501, cada um com 3.750 shp, capaz de cruzeiro acima de 600 km/h, transportar até 90 passageiros e voar por mais de 4.000 quilômetros.
Em 8 de junho de 1955 a American Airlines fez a primeira encomenda de 35 unidades, seguida por uma ordem de 40 aviões feita pela Eastern em 27 de setembro daquele ano. A construção do primeiro dos quatro protótipos começou no mês seguinte e foi concluída no fim de 1957.
Na época o backlog do Electra II já somava 144 pedidos de nove companhias: American, Braniff, Cathay Pacific, Eastern, Garuda, KLM, National, Pacific Southwest e Western — um total significativo para o fim dos anos 1950, que, entretanto, mostraria-se problemático alguns meses depois.
O protótipo N1881 fez seu primeiro voo sob o comando do piloto de provas Herman Fish Salmon em 6 de dezembro de 1957. A primeira etapa partiu das instalações da Lockheed em Burbank rumo a Palmdale, onde ocorreram os ensaios do L-188. O Electra II foi certificado em agosto de 1958; a Eastern recebeu a primeira unidade em 8 de outubro daquele ano e a American, quatro dias depois.

Por conta de uma greve de pilotos na American, coube à Eastern Airlines efetuar o primeiro voo comercial do Electra II em 12 de janeiro de 1959, na rota Nova York–Miami. Já em 23 de janeiro a American operou seu primeiro voo com o modelo na rota Nova York–Chicago.
Mesmo com novas encomendas de Ansett, Qantas, Northwest e Trans Australia Airlines, as vendas ficaram aquém das metas iniciais, resultando em baixa cadência produtiva e elevando o ponto de equilíbrio financeiro de 190 para 215 unidades.
Um motivo importante da fraca procura foi a chegada dos jatos de médio alcance, capazes de cobrir os mesmos trajetos em menos tempo e com maior conforto. Naquele período o maior consumo de combustível não era problema relevante, já que o petróleo ainda era barato.
Sequência de acidentes

Para agravar a situação, um Electra II da American caiu no rio Hudson, em Nova York, segundos antes de pousar em LaGuardia. O acidente, ocorrido exatamente dez dias após o início dos voos comerciais do Electra II, matou 65 dos 73 ocupantes. As investigações apontaram erro operacional: a tripulação, pouco experiente no modelo, interpretou de forma equivocada um novo tipo de altímetro. Mas o pior ainda estava por vir.
Na noite de 29 de setembro um Electra II entregue à Braniff International apenas 11 dias antes se desintegrou em voo. A tripulação não reportou qualquer avaria e não havia sinais prévios de anomalia nos sistemas.
As apurações indicaram que, nos momentos finais do mergulho fatal, a aeronave chegou a romper a barreira do som. Imediatamente toda a frota de Electra II foi retida até se esclarecerem as causas do acidente.
Após meses de investigação não se encontrou imediatamente um fator claro que explicasse o desastre. Uma evidência isolada mostrou que a asa esquerda havia se desprendido em voo, mas não existia indicação do motivo do rompimento.
Por precaução e na suposição de que reduzir cargas aerodinâmicas poderia evitar novos problemas, a Federal Aviation Administration dos EUA impôs uma restrição de velocidade: o Electra não poderia exceder 418 km/h.

Entretanto, outro acidente, em 17 de março de 1960, envolvendo um avião da Northwest que matou 63 pessoas, levou a pressão pública e parlamentar a exigir a proibição dos voos do Electra II. As companhias começaram rapidamente a cancelar pedidos, marcando o fim da trajetória do Electra nos EUA.
Vibração dos motores
Meses depois as investigações concluíram que ambos os acidentes foram causados por um fenômeno denominado “whirl mode”, provocado por vibrações dos motores em seus suportes quando submetidos a excitações externas que os levassem à ressonância, como um balanço provocado por turbulência.
Essa vibração propagava-se para as naceles e daí para as asas, tornando-se tão intensa que, em menos de um minuto, a junção entre asa e fuselagem podia romper-se, sem que a tripulação tivesse tempo para declarar emergência. A Lockheed resolveu o problema reforçando montantes, naceles e longarinas das asas. Contudo, a reputação da aeronave já fora severamente abalada.
Sem novos pedidos, a produção foi encerrada em 1961, após apenas 170 unidades fabricadas e prejuízos milionários, uma vez que a produção não alcançou o ponto de equilíbrio financeiro.
O vilão se tornou herói

Em 28 de janeiro de 1959 o Lóide Aéreo pediu ao então DAC (Departamento de Aviação Civil) autorização para importar alguns Electra II, mas teve o pedido negado. O DAC alegou que meses antes o Lóide havia importado alguns Douglas DC-6A que haviam sido arrendados à Panair do Brasil antes mesmo de voarem nas cores da empresa.
A forte repercussão negativa dos acidentes e a chegada massiva dos jatos levou algumas companhias americanas a se desfazerem de suas frotas de Electra II. Em 1961 a American Airlines colocou à venda um lote de Electra recém-recebidos, chamando a atenção de Lineu Gomes, então presidente do Consórcio Real, que negociou a compra de três aeronaves para substituir três Super Constellations então em uso. Em agosto de 1961 o Consórcio Real foi vendido à Varig.
O presidente da Varig, Ruben Berta, tentou cancelar o negócio com a American, considerando o Electra inadequado e perigoso. A American, porém, não aceitou reverter o acordo e, após negociações, a diretoria da Varig reconheceu as qualidades do modelo e encomendou mais duas unidades.
O Electra ganha o Brasil

Em 2 de setembro de 1962 chegou ao Brasil o primeiro Electra II, matrícula PP-VJM. O voo de Tulsa (Oklahoma) até São Paulo (Congonhas) levou três dias, com escalas em Miami e Port of Spain.
Em 25 de setembro daquele ano aconteceu o voo inaugural do Electra II na rota Rio–Nova York. Naquele ano os Electra II passaram a operar semanalmente a linha São Paulo–Rio–Belém–Port of Spain–Santo Domingo–Nova York; três vezes por semana faziam São Paulo–Rio–Recife–Fortaleza e, duas vezes por semana, São Paulo–Rio–Manaus.
Quando a Varig incorporou a Panair do Brasil em 1965, os Electra II passaram a operar semanalmente o chamado “Voo da Amizade”, ligando São Paulo a Lisboa com escalas no Rio de Janeiro, Recife e na ilha do Sal. Dada a enorme popularidade do Electra no país, a Varig adquiriu mais quatro aviões da American Airlines entre 1968 e 1970.
Em 1970 a Varig comprou da Northwest Airlines outros dois exemplares do modelo L-188 PF (Passenger/Freighter), com uma grande porta de carga no lado esquerdo da fuselagem. Essas versões não tinham a porta dianteira de acesso nem o lounge localizado na parte traseira da cabine de passageiros.
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Essas aeronaves foram registradas como PP-VLA e PP-VLB. Embora tenham operado por um tempo no transporte de cargas, especialmente para Manaus, acabaram sendo convertidas para uso exclusivo de passageiros alguns anos depois. Na primeira metade da década de 1970 os Electra II serviram diversas rotas domésticas, cobrindo praticamente todo o território nacional.
Em 1975 o DAC emitiu uma norma exigindo que os voos da ponte aérea fossem realizados com quadrimotores. A medida retirou de serviço na rota os bimotores Fairchild FH-227 Hirondelle, Handley-Page Dart Herald e o NAMC YS-11 “Samurai”, deixando a linha para o Viscount e o Electra II.
A Vasp em seguida retirou seus Viscount de operação, fazendo do Electra o equipamento padrão da principal rota aérea brasileira. Nascia um mito: o Electra reinou na ponte aérea por duas décadas, chegando a operar até 88 voos diários.

Na noite de 31 de outubro de 1962 o Electra II PP-VJL participou da famosa Crise dos Mísseis, um dos episódios mais tensos da Guerra Fria, que por pouco não desencadeou um conflito global.
Durante seu pernoite em Nova York a ONU requisitou a aeronave para buscar em Havana seu secretário-geral, U Thant, que negociava a retirada dos mísseis soviéticos da ilha. Após decolar de Havana e deixar o espaço aéreo cubano, o PP-VJL foi escoltado por caças americanos até Nova York, com todo o corredor aéreo da rota fechado para outras aeronaves.
Esse voo histórico foi tripulado pelos comandantes Platô e Padovani, pelo engenheiro de voo Werner e pelo navegador Nicásio.
Sem aviões próprios para operar entre Santos Dumont e Congonhas, Cruzeiro do Sul, Vasp e Transbrasil firmaram um acordo com a Varig para que esta cedesse aeronaves e tripulações. A oferta de assentos para cada empresa do pool era proporcional à participação de mercado de cada uma; a companhia operadora ficava responsável apenas pelo pessoal de cabine.
Entre 1975 e 1979 quatro Electra II (PP-VJN/VJU/VJE/VLC) voaram na ponte aérea apenas com a pintura básica da Varig, sem exibir o nome ou o logotipo de nenhuma operadora, para que não se destacasse uma única companhia do pool, já que o serviço era realizado em conjunto.
Depois, por questões logísticas, os quatro aparelhos receberam a pintura completa da Varig. Em 1977, para atender à demanda crescente da ponte, a Varig comprou mais dois aviões da colombiana Aerocondor; essas aeronaves estavam em péssimo estado e foram totalmente reformadas nas oficinas da Varig em Porto Alegre.
Os dois últimos Electra adquiridos pela Varig chegaram em abril de 1986. Esses exemplares pertenciam à Tame (Transportes Aéreos Militares Equatorianos) e não estavam em condições de voo. A Varig encontrou um lote de quatro aparelhos da Tame e propôs fazer a manutenção completa, ficando com dois aviões como forma de pagamento — proposta aceita pelos equatorianos.
Fim de uma Era
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A introdução dos Boeing 737-300 na ponte aérea, em 6 de dezembro de 1991, selou o fim da brilhante carreira do Electra no Brasil. Exatos 29 dias depois, em 5 de janeiro de 1992, o PP-VLX operou o voo VP651 (Rio–São Paulo) e, ao cortar motores no pátio de Congonhas, realizou o último voo comercial de passageiros pagantes no país.
Mesmo assim, o Electra recebeu homenagens inéditas no Brasil: em 6 de janeiro a Varig promoveu quatro voos oficiais de despedida, com a presença de personalidades, jornalistas, políticos, empresários e das direções da Varig, Vasp e Transbrasil.
Esses voos foram operados pelos aviões PP-VJN e PP-VJO, que decolaram do Rio para São Paulo e retornaram à capital carioca. A imprensa deu grande destaque ao fim das operações do Electra e várias empresas fizeram campanhas de homenagem. Muitos passageiros foram se despedir da aeronave, emocionando-se com o encerramento das operações.
Reconhecendo sua carreira respeitável e a admiração que despertou durante 30 anos, a Varig doou ao Museu Aeroespacial da Força Aérea Brasileira o PP-VJM, o primeiro Electra II a chegar ao Brasil — único exemplar preservado no mundo.
Embora os demais Electra da Varig tenham deixado o país em boas condições, nenhum está apto a voar hoje: alguns se perderam em acidentes e outros foram sucateados. Um desfecho triste para aeronaves que fazem parte da memória da aviação brasileira.
Publicado originalmente na AERO Magazine 187 · Dezembro/2009






